2/20/2007

Nowhere warm


Olhou para as malas e deixou-as ali, ao canto da cama. Debatia-se com as roupas, arquitectando o cenário e os encontros em lugares fictícios ou não. Afigurava os sorrisos e sentia o calor que lhe davam pela saudade sentida. Imaginou as pessoas tal como eram, quando as deixou na última vez. Gostava de as relembrar como foram, misturando-as num sentimento de ternura e profunda admiração. Continha na sua alma, aquelas imagens que a coloriam nos escapes do seu quotidiano real. Viajava com elas, pelo desejo de emoções felizes e reconfortantes. Ponderou aquela ideia de partida, afim de findar as saudades do mundo oposto ao seu.
Sabia que não podia voltar atrás, ainda que poderia fazer em relação ao espaço...
Deixou-se viajar, por dentro.

Imagem:Waterhouse, John William - Psyche Opening the Golden Box

2/15/2007

Submersão


Nem os pensamentos guardas, porque esses foram embora sem destino e, neste jogo, não há boomerangs. Puta de vida, quando o vazio que te preenche é já a mobília habitual que conheces bem. (...)
Tinhas que te ir embora, só porque tinha que ser. E eu fico aqui, ressacando na assombração das ilusões que passam nestas paredes, as mesmas, de sempre. Nas ruas por onde passo, vais brincando comigo, escapando-me do meu olhar. Já nem te percebo ou me percebo, quando a imaginação também me invade. Vou te procurando nos outros, porque o desejo de te rever é mais forte do que eu. Pensas em mim? Que se lixe a tua resposta. Fugiste e eu parti do lugar em que me deixaste. Mas levaste uma metade minha e isso faz falta como um raio. E ando aqui nas quedas, porque nestas voltas, a alma vai derretendo o corpo, enquanto tudo me foge. Espalho-me neste chão solto, mas vou fingindo que sou trapezista, só para parecer bem. Mas cá dentro, arde aquele espaço que me levaste, desnorteando os meus sentidos. (...)
É a puta da vida, quando o vazio que tens, nem sempre te pertence: - Tu já és o meu vazio.


Imagem: MACLEAN, Jane - Morning.

2/14/2007

Beauty in the breakdown



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
Porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
E eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado.
Quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
Para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
Que ficou sobre a minha carne como nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face.
Teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite.
Porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa.
Porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço.
E eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos pontos silenciosos.
Mas eu te possuirei como ninguém porque poderei partir.
E todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas.
Serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.

Vinicius de Moraes - "Ausência"



2/11/2007

"Paixão Turca"


A noite caía como um véu prateado sobre o fim do dia. Desta vez, resolveram entrar no mundo de sensações e sabores marroquinos, quentes com os ventos do deserto. Envolvidas naquele ambiente, dissonante da realidade habitual que confrontavam diariamente, falaram das suas vidas resumidamente. Finalmente, tinham arranjado espaço no tempo para poderem esvaziar a alma. A escolha foi difícil, mas optaram por um chá “Paixão Turca”, dando mais calor à conversa que nascia. A amizade já era de longa data, e riam-se das histórias antigas que cada uma passou. Da bagagem que levavam, encontravam-se estilhaços de tempos vividos, catalogados por tempos e títulos de bom ou menos bom. Estavam ali, risonhas até com as histórias tristes que vinham à memória. – Como tempo passa....- dizia uma delas.
Um pouco mais com os pés assentes na terra, definiam a situação actual das suas vidas, com sabedoria e lucidez.
Sendo sobreviventes, talvez de um destino, conseguiam tirar partido de todas as histórias vividas, tal como a letra da música que soava naquele ambiente exótico. Sabiam o que queriam e para onde queriam seguir. Iam aprendendo com os anos, as lições da vida...

“Sadness and happiness are two paths
To walk on one path, isn't right
Season changes,
Happiness comes,
Sadness goes” *
Imagem: Gassem - Ombre de femme.
* Tradução de "Mausam" - Nitin Sawhney.

2/07/2007

It has to end, to begin



Os pensamentos voam, como se fossem bolas de sabão. Livres.
Cá dentro, há um sopro de vida que me leva para um estado maior de clareza. Reconfortantes são os momentos vividos, passados entre as ruas da cidade que levam a redescobrir um sentimento de bem-estar.
Caminhei sem ser pelos passos, mas pela vontade de matar saudades, daquela emoção nostálgica vivida apenas noutro lugar. Afinal ainda é possível...
Renasci na cidade, que julgava ser somente vivida pelos forasteiros. Segui e sorrindo sozinha por essas ruas feitas com histórias, fui enchendo os pulmões com aquele ar frio de Inverno. Hoje, sou uma nova história e vou com pensamentos que voam como se fossem bolas de sabão...

2/04/2007

Linha traçada



Viajamos porque é necessário
enfrentarmos o desamparo dos dias,
ao mesmo tempo que procuramos
um lugar para descansar
e nele ansiarmos por um regresso.

(Al Berto)
Foto: Pedro Guimarães

2/02/2007

Riding Couple


Sabiam um de outro, em segredo. Passavam as noites contando com o dia seguinte, para se encontrarem no olhar um do outro. Viviam aquela paixão, como garotos um pouco entontecidos com a desordem de sentimentos que prosperava sem aviso. Sentavam-se na mesa, puxando conversa pública mas falavam paralelamente com os olhos. Apreciavam aquela conversa muda em código secreto que só ambos entendiam e podiam decifrar.
Os encontros iam-se moldando às pequenas brechas horárias, que o dia ou emprego destinavam – os seus 15 minutos. As mãos descontroladas, cediam aos impulsos do toque, em malabarismos ritmados que alimentavam o desejo de se conhecerem melhor. Sentados lado a lado e por baixo da mesa, as pernas também cediam àqueles deleites do espírito, fazendo-os pensar que ninguém notava.
Foram muitos os tais 15 minutos até à chegada daquele dia, em que assumiam disfarçadamente todos os toques, apanhando de surpresa os olhares alheios dos mais distraídos.
Queriam-se.
Querem-se.
Esse dia marcou-me. Revi-me naquela história e fui vivendo aqueles passos contigo na minha mente. Fomos crescendo em segredo para depois morrermos com o esmorecer dos dias. Na tua ausência, esqueci-me do teu olhar e o teu toque, perdi-o com o passar dos dias. Fomos os secretos daquela história, os tais que viviam 15 após 15 minutos. Os tais que viviam os momentos e que se encontravam nos olhares. Aqueles, que também se queriam, que se deram mas... que fugiram por medo.
Como eu ainda te quero...
Imagem: Kandinsky, Wassily - Riding Couple.